“Máscara de folha-de-flandres”*

O ferro ao pescoço e ao pé, funcionando como coleira, e a máscara de folha-de-flandres foram tecnologias comuns à escravidão, conforme Machado de Assis descreveu[1]. Entre nós, uma nova máscara de folha-de-flandres, atualizada tecnologicamente, impede, além do paladar, a visão, serve para embriagar, e não para manter a sobriedade: a urna eletrônica aparenta racionalização, mas legitima o domínio de uma pequena matilha sobre o país inteiro. Não é pela escolha de quem serão os próximos senhores que os eleitores deixam de ser dominados. Da máscara de folha-de-flandres à urna eletrônica, o fio-condutor é o descompasso entre progresso técnico e liberdade: a advertência e a denúncia que fizeram Rousseau, no século XVIII, e a Teoria Crítica, no século XX,  desmistificaram a neutralidade do avanço tecnológico e o explicitaram como instrumento de dominação. É verdade que tanto nos tempos de Rousseau, como nos de Marcuse, o progresso tecnológico construiu, objetivamente, ainda mais comodidades, mas também é verdade que, subjetivamente, fez com que as pessoas se importassem menos com a ausência de liberdade a que foram submetidas ou que sequer a percebessem: tornou-se possível viver com “euforia na infelicidade”[2], conforme Marcuse argumentou. Atualmente, se há compasso do progresso técnico com algo, é com a administração, não com a liberdade: os mesmos que aproveitam-se das comodidades são mobilizados para trabalharem além de um tempo que é desnecessário de acordo com o estágio atingido pelas forças produtivas – eles são a prova viva de que a produção é mais importante que as pessoas, uma vez que, mesmo que se perca a liberdade, se reproduz capital. Na produção, a máquina se sobrepõe ao trabalhador e a tecnologia é uma ferramenta política de dominação social à medida que funde-se com a prática, corporifica/sedimenta/coagula a dominação e transfigura-a em administração sob o véu da ordem objetiva das coisas: a dominação é inerente à tecnologia por conta do programa desta em guiar as pessoas, controlá-las e adestrá-las com movimentos e pensamentos heterônomos, coisficando-as, embora aparente ser neutra graças à formalidade de seu funcionamento: a penetração da tecnologia no corpo e na alma dos trabalhadores expressa-se nos gestos mecânicos e na racionalidade maquinal e tecnológica (autocontrole) que adquiriram sob a exigência da eficiência produtiva e distributiva do capitalismo monopolista. Na política, a administração ocorre pelo amálgama de partidos que regulam-se, aprioristicamente, pelo funcionamento da tecnologia-estado de dominação social: a arbitragem de todas as questões sociais por instituições-máquinas-ferramentas reduzem a individualidade daqueles que apenas têm de se adaptarem à imanência da produção e distribuição de comodidades (falsas necessidades). Os conflitos sociais, cada vez mais raros nos últimos anos, uma vez que aqueles que julgam-se progressistas, mas que regulam-se pela imanência do sistema de produção de comodidades, são Medusas para sindicatos e entidades estudantis que “dirigem” e, assim, contribuem para a administração tecnológica da mobilização para elevar o padrão de vida – à direita e à esquerda, os partidos políticos capitulam ao status quo aprioristicamente tal como a dominação na produção é, também, a priori. Administram-se depressões, estabilizam-se conflitos e toleram-se as contradições estruturais do capitalismo tal como um operário se adapta à máquina. O a priori tecnológico e o a priori político projetam a natureza e o homem como objetos de controle: tudo é organizado e administrado sob o véu da eficácia e neutralidade científicas, no trabalho ou no “tempo livre”.

Vão, átomos sociais, à urna eletrônica, serem administrados na vida!


* ASSIS, Machado de. “Pai contra mãe” In: A cartomante e outros contos. 3° ed. São Paulo: Moderna, 2004, p. 35.

[1] “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um  cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas”. Ibidem, p. 35.

[2] “Euphoria in unhappiness”. MARCUSE, Herbert. One-dimensional man: studies in the ideology of advanced industrial society. London/New York: Routledge, 2002, p. 07.

6 Respostas to ““Máscara de folha-de-flandres”*”

  1. joao carlos - poderoso mab Says:

    Ao ler esse artigo, cada vez mais fica visivel a força dos donos do meio de produção, aumentando sua potencialidade ilúsória de liberdade . Em um dos melhores livros de ficção cintífica Blade Runner de Phillip K Dick, é colocado o poder das máquinas sobre a espécie humana, onde uma mistura de falta de racionalidade e ao mesmo tempo um controle dos impulsos vitais para o homem definham a especie humana . Urna eletrônica é apenas mais um artificio de controle … a ficção dos “chips” cerebrais controlarão nossa subjetividade por inteiro. saudações do poderoso MaB

  2. felipe Says:

    infelizmente a midia immpoê as falsas necessidades aos homens, e por fauta de conteúdo diversificado e da cultura como revistas estarem cada vez mais caras( ou salário muito baixo) não adquirem conteúdos novos para poderem argumentar certas imposições, e os jovens cada vez menos politizados, nem sabem dos conflitos sociais da época de nossos pais, diretas já, por exemplo, quantas pessoas foram exiladas ou mortas para que pudessemos ter a liberdade que temos hoje ( por mais que seja fantasiosa) valério duto, sem movimentos estudantis, propagandas mentirosas sobre escolas e niguem se manifesta, a ACOMODAÇÃO também virou cultura.

  3. Jane Says:

    Isso que você chama de “acomodação” eu chamaria de Cooptação, Felipe. Por conta de uns cargos e de tapioca à vontade no Planalto Central, quadros; garotos e garotas, meninos e meninas da geração – que erroneamente denominaram “cara pintada” – muda m os discursos, emudece os sentidos e a prática vira uma pachorra violenta e miserável.
    Tá aí. A pergunta é: Como é que se fabrica um heroi? Não sei.

    E parabéns! Mais uma vez arrebentou na argumentação. Só não concordo muito com “administrados na vida”. Não vejo nenhum governo que, tendo sido eleito por esse povo, consiga administrar alguma coisa. Para mim, no máximo, uma macaqueação estrangulada de uma provincia qualquer perdida pelo mundão sem porteira. Kabina, talvez…

  4. Jane Says:

    Ops. É Cabinda o nome certo…

  5. cris Says:

    Anderson, cada vez que leio uma nova publicação sua percebo que `a margem dessa sociedade existe ainda alguns seres indignados com esse “espetáculo de compra e venda “,black friday,etc,que ocorre na classe C .

  6. Anibal Tavarez Says:

    I love it whenever people get together and share ideas. Great website, continue the good work!

Deixe um comentário